Esse pode ser considerado um dos maiores êxitos do diretor soviético Andrei Tarkovsky (1932 – 1986), fazendo bom uso de cenários naturais externos ele literalmente cria uma poesia visual introspectiva com profundo significado filosófico/religioso. Depois de dirigir Solaris (1972) e Stalker (1979) [ambos baseados em livros de sci-fi], o próprio Andrei não se considerava diretor de sci-fi mas rejeitava totalmente essa ideia, ele afirmava ser um artista que cria histórias e pinturas em movimento, defendendo o seu estilo próprio de filmagem, conceito esse que ele chamou de “esculpir o tempo” (que também é o titulo de seu livro lançado em 1985).
Se não fosse pela persistência e genialidade de Tarkovsky esse filme talvez nunca teria sido finalizado: após um ano de filmagens os rolos do filme não foram revelados corretamente, demandando uma refilmagem do zero. Relatos de pessoal da produção afirmam que na época Tarkovsky teve um pequeno ataque cardíaco, estava com o orçamento financiado pelo estado apertado, vivenciando um período de dificuldades na vida e estresse.
As locações escolhidas desde o inicio não puderam ser visitadas por infortúnios da natureza (um terremoto, por exemplo) optando por locações em meio a resíduos tóxicos, talvez sem saber. Esses, dentre outros fatores minaram ainda mais a saúde de Tarkovsky levando ao seu falecimento mais tarde em meados dos anos 80 (incluindo de alguns dos atores que aparecem em tela e membros da equipe de produção).
Esse filme foi vagamente baseado no livro Piquenique na Estrada, dos irmãos Arkadi e Boris Strugatsky e o roteiro foi escrito pelos mesmos a pedido de Tarkovsky. A sinopse pode ser resumida da seguinte forma: Um homem (o Stalker) guia dois visitantes (o Professor e o Escritor) através de uma área conhecida como Zona em busca de uma sala que concede desejos. Tudo isso se passa em uma cidade fictícia em que ocorreu a queda de um meteoro ou nave alienígena. Nenhum dos personagens que você verá no filme tem nome, eles são conhecidos somente com seus devidos títulos.
Se você for assistir, antes de tudo, ponha de lado a forma comum de cinema que consumimos e tente abrir a mente para essa obra. O cinema de Tarkovsky é muito mais poético, metafísico e contemplativo do que se pode imaginar de um filme que é classificado simplesmente pelo gênero de 'ficção científica'. Cada cenário é percorrido pelas lentes da câmera de forma lenta, captando a ação e emoção dos personagens e o desenrolar da história em "tempo real". Da mesma forma os diálogos são ambivalentes indo desde o fantástico ao espirituoso, em muitos casos o próprio personagem fala um pouco de si: suas fraquezas, pontos fortes e desejos. Esses fatores dentre outras coisas te convida a fazer uma "auto meditação" e tenha a percepção de estar junto naquela historia. Isso pode ser recompensador dependendo de seu ponto de vista.
Abaixo irei comentar alguns destaques do filme e seu significado de forma breve e direta.
[Daqui em diante haverá spoilers.]
O filme é apresentado em colorido e em sépia. Em sépia retrata o mundo em que os personagens vivem, ou o nosso mundo, o mundo real enquanto que todas as sequencias dentro da Zona são em cores. Isso é fácil de diferenciar. Mas enquanto a parte final em que o Stalker volta pra casa com sua esposa e filha ser mostrado em cores? Isso explico depois.
O inicio do filme vemos o Stalker observar sua filha e sua esposa dormindo na cama. Essa parte começa e termina mostrando o que parece ser medicamentos, seringa, um copo com água, algodão, um papel amassado e um maçã mordida.
Me chamou atenção o profundo conhecimento que o Stalker tem da Zona. O que acho ser representado na cena em que os três chegarem e o Stalker pedir um tempo pra ir verificar algo, ele vai pra um canto cheio de vegetação se deita e se vira como se estivesse em uma cama. É como se ele sentisse ou buscasse sentir o lugar, como se quisesse comunicação de alguma forma.
A jornada dos três pode ser comparada a uma peregrinação em uma terra santa ao mesmo tempo cheia de mistérios, em que durante a caminhada dura e tensa se compartilha pensamentos, declara poemas e citações de trechos bíblicos. Apesar de tudo, a Zona não aparenta ter grandes perigos a ponto de ameaçar a vida do Escritor e do Professor, o Stalker diz que por algum motivo a Zona não puniu eles nos deslizes que cometem e foi sorte a deles nada ter acontecido.
Eles não estão andando em linha reta, muito menos subindo, percebe-se que estão descendo pouco a pouco até certo ponto. Em uma cena bastante simbólica podemos ver os três passando por um túnel comprido, húmido e curvo e ao final dele passar por dentro de um poço com água no pescoço. Após isso eles já estariam bem perto do quarto que concede desejos e devem se desfazer de qualquer tipo de arma imediatamente.
Muitos afirmam que essa parte do túnel é comparado figurativamente a estarem adentrando o útero da "mãe terra" e a parte da água como que passando por um tipo de batismo no qual representa o “nascer de novo”. Logo após isso, eles passam por um tipo salão com pequenos montes de areia no chão e grandes pilastras de lado a lado. Ali ocorre algo inesperado, inexplicável e interessante.
Finalmente os personagens chegam na “ante sala”, digamos assim, o Stalker fala que seria um tipo de teste final (o Moedor de Carne) em que muitos perecem inclusive um amigo e tutor do Stalker, chamado de Porco Espinho, pereceu ali junto com seu irmão. Todos passam. Após isso há um intenso debate a cerca da natureza do quarto e de que tipos de desejos ele concretiza.
Após muita discussão com o Stalker chegam a conclusão, o Professor e o Escritor, de que o quarto concede o seu desejo mais profundo e sincero, algo que talvez eles nem façam ideia que realmente tem. Com medo se recusam a entrar lá e todos se sentam exaustos, bem de frente pra entrada aberta do quarto. De dentro do quarto se ouve um gotejamento e pouco a pouco se torna uma chuva.
Retornando, (notamos as cores sépia na cena) ao ponto de partida, onde tudo começou os personagens se encontram novamente, num bar.
A esposa do Stalker aparece junto com sua filha e eles vão para casa juntos. Ao chegar em casa o Stalker está muito triste e com sua fé abalada após tudo o que aconteceu na Zona aquele dia, desabafando com sua esposa. Após acalmá-lo, a esposa tem um monólogo (ela olha diretamente pra câmera) e fala da oposição da família pra se casar com ele e no risco de nascer filhos deficientes.
Aqui tem um detalhe interessante. As cenas em que a filha do Stalker (de acordo com o livro ela se chama ‘Monkey’) aparece em foco e acordada fazendo algo ou não, são em cores.
E até aqui concluímos que se tem cores em tela tem algo a ver com a Zona; e de fato é verdade, pois a filha deles foi uma “consequência” positiva. Uma prova clara e inegável disso é quando ela move os copos em cima da mesa com a mente. Você pode tentar buscar alguma ligação com o fato de o trem estar passando e os movimentos ocorrerem por vibração, mas não faz sentido. Ela de fato move cada copo pra direções diferentes. Muitos críticos comentam sobre esse trecho afirmando ser uma metáfora para a fé, mas na verdade não é, é apenas uma forma de mostrar que uma parte da Zona está ali naquele mundo cinza e sem esperança. Ela é a esperança.
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